Instituto de Cinema de SP

CRÍTICA | Estou Pensando em Acabar com Tudo

Desde que iniciou sua carreira no cinema, Charlie Kaufman se destacou por desenvolver tramas inteligentes e intrigantes. Anos antes de seu primeiro projeto chegar às telonas, enquanto estudava Cinema na Universidade de Nova York, período onde começou a produzir esquetes e seriados de humor para a televisão, Kaufman escreveu o roteiro do que viria a ser seu primeiro filme. Dirigido por Spike Jonze, o longa Quero ser John Malkovich foi lançado em 1999, e logo de cara, Charlie Kaufman recebeu uma indicação ao Oscar por Melhor Roteiro Original.


A carreira promissora do roteirista logo chamou a atenção de Hollywood, e entre outras produções escritas pelo nova iorquino, estaria aquela que o alavancaria ao patamar mais alto da indústria do cinema. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de 2004, estrelado por Jim Carrey e Kate Winslet, rendeu a Kaufman o grande prêmio de Melhor Roteiro Original no Oscar daquele ano.


Não demorou muito para que Charlie Kaufman se aventurasse na direção de suas produções. E, após dois filmes trabalhando como o principal idealizador (“Synecdoche, New York”, de 2008, e o interessantíssimo “Anomalisa”, de 2015), Kaufman chega em 2020 com uma nova produção. Estou Pensando em Acabar com Tudo tem seu roteiro baseado no romance de 2016 de mesmo nome, escrito por Iain Reid. O filme, que conta com produção da gigante do streaming, Netflix, teve seu lançamento direto na plataforma, com passagens por poucas salas de cinemas, devido à pandemia do Covid-19.


A trama conta a história de Lucy (Jessie Buckley), que parte em viagem com seu namorado Jake (Jesse Plemons), a fim de conhecer os pais do rapaz (Toni Collette e David Thewlis). Mesmo decidida a conhecer a família e encarar a tempestade de neve que os espera, a moça parte cheia de dúvidas sobre seu relacionamento, pensando repetidamente em acabar com tudo. Porém, quando chega na casa de fazenda, onde Jake passara a infância, Lucy é pega de surpresa pelo comportamento curioso dos moradores da residência, se vendo presa em um looping de descobertas e questionamentos sobre o que imagina acerca de relacionamentos, passagem do tempo, e também sobre a própria realidade.


O filme tem sua narrativa contada através da perspectiva de Lucy, que através de diálogos longos e complexos, em extensas cenas com cenários belos e frios, nos leva a mais dúvidas do que respostas, nos fazendo sentir exatamente como a personagem de Jessie Buckley deveria se sentir.


Conhecido por sua narrativa exaustiva e pela presença constante de tensão, o livro de Iain Reid mantém vivo, a cada capítulo, o suspense psicológico da trama. E pensando nisso, vemos que a adaptação de Charlie Kaufman teve grande êxito. Porém, por conta dessa tensão presente também nas cenas do filme, o longa é colocado como um thriller de terror. Mas a verdade é que é difícil classificá-lo. A produção flerta com muitos elementos de diferentes gêneros, desde o horror até à fantasia. Em dado momento da trama, onde naturalmente seríamos surpreendidos pelos famosos “jumpscares”, tão presentes nos filmes de horror, o filme nos move drasticamente para o caminho da ficção, e portanto acaba nos prendendo a atenção e a curiosidade, principalmente no segundo arco da trama, onde os personagens se encontram dentro da casa de fazenda.


As inesperadas interações entre os personagens nos trazem um desconforto diferente a cada momento e, por meio de atuações e textos extremamente afiados, somos surpreendidos a cada nova cena. A mãe de Jake, vivida por Toni Colette, é um elemento que se destaca e traz ainda mais tensão à narrativa, possuindo variadas facetas dentro do filme, uma mais intrigante que a outra. Mérito do texto de Kaufman e da interpretação de Colette, um grande acerto da produção. Os demais intérpretes não ficam para trás, e a protagonista de Jessie Buckley nos leva por um caminho de descobertas (e muitas, muitas dúvidas) de maneira fluida e instigante.


A bela fotografia de Łukasz Żal, diretor indicado ao Oscar em 2013, casa perfeitamente com a melancolia que o longa traz, e conversa também com a angústia dos personagens ao envelhecer, vendo o tempo passar (ou, como o próprio filme nos diz, o tempo é que nos vê passando por ele). Outro ponto técnico a se destacar na produção é a super criativa mixagem de som, que demonstra os pensamentos dos personagens em inúmeros momentos, através de seus próprios pontos de vista. De vez em quando, nos deparamos com “falhas” no som, que ora segue normalmente em uma cena, ora é cortado inesperadamente em outra, como se o filme quisesse manter nossa atenção em determinadas frases. Em certa cena do filme, por exemplo, a personagem de Toni Colette faz uma pergunta a Jake, personagem de Jesse Plemons, que até responde, mas suas palavras não se fazem audíveis, como se apenas a pergunta fosse digna de nossa atenção naquele momento.


Apesar de tantos detalhes meticulosos da produção, que acaba sendo verdadeiramente criativa e muitas vezes inesperada, o filme acaba se mostrando, em determinadas sequências, bastante cansativo, talvez por prolongar ao extremo as situações de tensão e os diálogos entre os personagens. Isso muito é evidenciado nas longas cenas onde os personagens viajam de carro, com a densa nevasca ao redor. Nessas sequências, o que prevalece são os diálogos, que viajam entre pensamentos, intrigas e cumplicidade.


Por falar em pensamentos, esse talvez seja o principal personagem da trama, o veículo que nos faz viajar pelo tempo e pela realidade. Uma interpretação a tudo o que vemos na tela é de que acompanhamos as memórias e pensamentos de Jake, onde as lembranças fluem de maneiras não-linear, adentrando-se umas nas outras, mostrando até espécies de “realidades” que não deveriam existir. As possibilidades do pensamento, elemento tão importante e evidente aqui, são inúmeras. Isso é ainda mais claro nas cenas de coreografia e canto no último ato do filme, elementos improváveis de acontecer na realidade do personagem de Plemons, mas que é verbalizado mais de uma vez no início do filme.


Talvez por essa falta de linearidade e clareza que funciona a mente humana, o filme se mostre muitas vezes confuso, como se convidasse o expectador a assistí-lo mais de uma vez. Mas o que sobra em cena é a sensação de desconforto, fazendo com que nossa experiência visual seja quase que sensorial. De tal modo, a experiência é interessante, ainda mais vinda de um diretor tão inventivo como esse, mas não deixa de ser um bocado cansativa.


 


Por Pedro Dourado.

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