A criação do Natal, por Veridiana Domingos

Muito se ouve sobre a necessidade de retomar o “espírito do Natal” em meio a essa loucura que o comércio instaura (e as pessoas entram de cabeça) todo mês de dezembro. Pelas afinidades que tenho com o tema da “memória social”, sempre me ponho a refletir, no entanto, por que não resgatar as pressões políticas e jogos de poder que envolvem esse tal “espírito de Natal”? Toda a história da humanidade foi marcada por conflitos e o Natal não escapou desta lógica.
O cristianismo, que permaneceu “marginal” até cerca dos anos 300 d.C., ganhou amplo reconhecimento e legitimidade quando o Estado Romano passou a tolerá-lo oficialmente e, posteriormente, adotou-o como religião oficial. Até então, o cristianismo sofria grandes perseguições e se matinha por meio de pequenas comunidades com forte apego aos rituais. Eram eles que deixavam o grupo coeso e conservavam a memória religiosa. Além da pura decisão estatal sobre a religião cristã, o cristianismo se beneficiou do crescimento de cultos que eram similares a si próprio, em geral, religiões messiânicas, cheias de mistérios e henoteístas[1]. O último imperador a perseguir duramente os cristãos foi Diocleciano, sendo que seu sucessor, Constantino se mostrou bastante favorável a eles. Constantino era um adorador do deus Sol – um dos deuses henoteístas que cresceu imensamente em importância por toda região do Mediterrâneo e Ásia Menor. Esse tipo de crença vinha se ampliando fortemente no Império ao longo do século anterior ao de Constantino. A celebração do Deus Sol acontecia em 25 de dezembro (próximo ao solstício de inverno, no hemisfério norte, que acontece dia 21 de dezembro) baseado na crença pagã do dia em que o Sol, após atingir seu ponto mais baixo no céu no ano, volta a se reerguer, marcando, assim, seu renascimento. Constantino, que já cultuava o Sol, se converteu ao cristianismo, identificando assim o Sol em Cristo – e vice-versa. A celebração do dia 25 de dezembro foi trazida pelo paganismo (que era anterior ao cristianismo e foi incorporada ao cristianismo por demandas e pressões políticas presentes na época de Constantino. Dia 25 de dezembro não é exceção: há uma série de datas que representam sobreposições que as comemorações cristãs fizeram às celebrações pagãs, de modo a angariar maior apoio e aceitação da população.
É desta maneira que as tradições dos grupos mais antigos são os suportes naturais de muitas memórias, as afirmando e as sustentando. É assim que, uma data, uma celebração ganha autoridade e pouco a pouco se consagra. Mas, ao mesmo tempo, eventualmente, ela resulta de um passado obscuro, de tempos que parecem se perder, e ela os transforma, doando-lhe um novo sentido: o dia do deus Sol é ressignificado à luz do cristianismo e se torna o dia de nascimento daquele que dá ao nome à nova religião em questão. De uma só vez, a nova comunidade cristã renova essas tradições, alterando a sua posição no tempo e no espaço. Ela a renova também por meio de reconciliações inabituais, oposições inesperadas, por combinações e alianças; pelos paralelos incomuns, por oposições inesperadas e por novas combinações. Tudo isso foi possibilitado pela atuação de Constantino no Edito de Milão garantindo assim espaço no Império Romano para os cristãos. O terceiro século d.C. marcou o 25 de dezembro como o mais importante dia no calendário católico. Mas não apenas: houve um programa de adequação do cristianismo, por parte da Igreja Católica, em relação às demais crenças pagãs. Adequação mas, sobretudo, sobreposição da Igreja Romana sobre as demais igrejas cristãs minoritárias que haviam se espalhado.
Para nós, pesquisadores, dia 25 de dezembro não tem uma luz especial advinda diretamente do divino. Esta luz foi fruto de pressões políticas, conflitos sociais e institucionais. Não teria como ser diferente. É assim que construímos nossa história, nossa memória. É assim que consolidou-se o cristianismo, consolidou-se o Natal.
*socióloga, bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atualmente é mestranda em Sociologia na mesma instituição, membro do Núcleo de Estudos em Teoria Social Contemporânea (NETSC- CERU) e desenvolve pesquisa na área de Memória, Teoria Social e Violência.
[1] Henoteismo diz respeito a religiões que possuem vários deuses, no entanto, dentre todos, um é proeminente e louvado.